segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Cultura livre e propriedade intelectual na rede

O mundo assiste, neste início do século 21, a um movimento que está quebrando velhos paradigmas muito bem consolidados e incorporados pelas sociedades capitalistas durante a era industrial. A reboque, a indústria cultural vive uma crise que ameaça suas enormes margens de lucro, superadas ano a ano até algum tempo atrás.

Para sobreviver à era informacional, marcada pela difusão da rede mundial de computadores e dos meios tecnológicos de produção e distribuição de cultura – o suficiente para quebrar os tais antigos paradigmas -, as grandes corporações de mídia (gravadoras, distribuidoras, etc.) entraram em uma batalha legal para impedir a produção criativa e a disseminação de conteúdo cultural pela internet. A ideia é engessar a rede.

Lawrence Lessig, em seu livro Cultura Livre, atenta para o principal argumento e a grande arma da indústria para atingir tal objetivo: o copyright, uma garantia legal de proteção aos direitos autorais. O próprio Lessig, defensor da internet como meio de produção e difusão de cultura, não se opõe ao direito autoral. Mas considera exagerada a campanha do poder empresarial para podar qualquer tipo de conteúdo que não gere lucro para si. “Atualmente nós estamos no meio de outra ‘guerra’ contra a ‘pirataria’. A Internet provocou essa guerra”, afirma Lessig.

Os sistemas peer to peer são um dos principais alvos dessas influentes corporações na luta jurídica contra o que consideram pirataria. Essa tecnologia funciona a partir da internet e permite o compartilhamento de arquivos entre IPs (Internet Protocol) ativos. O primeiro aplicativo peer to peer da rede foi o Napster, criado em 1999. A partir daí, uma infinidade de programas surgiram e popularizaram entre os internautas o compartilhamento de músicas, filmes, séries, imagens, etc.

Para os velhos senhores da indústria, isso representa uma afronta ao copyright. Sendo este instrumento uma proteção legal, as empresas partiram para o ataque nos tribunais reivindicando punição aos piratas, conta Lessig. Tudo se resume à interpretação da lei. O autor coloca em questão, no entanto, a origem do conceito pirataria. Ele diz que para a maioria, o valor da produção cultural, sendo ela protegida pelos direitos autorais, deve ser considerado tanto para o uso quanto para a venda desse material. Ou seja, para usá-lo, devemos pedir permissão.

Essa interpretação é radical. Por predominar na cultura corporativa e no poder constituído, o copyright está ganhando um alcance nunca antes visto e tem interferido não somente nas manifestações culturais comerciais, mas também na utilização e na recriação não-comerciais. Este movimento representa um retrocesso aos avanços da era informacional, que permitem a confluência de ideias e de cultura entre todas as pessoas, e desafiam o domínio soberano das que antes detinham exclusivamente os meios de produzir bens culturais.

A confusão na interpretação da pirataria, segundo Lawrence Lessig, é resultante de uma distinção que o Judiciário não faz. Trata-se da “distinção entre, de um lado, republicar um trabalho de alguém e, do outro, construir algo em cima ou transformar o trabalho de outrem. A lei de copyright em seu nascimento apenas lidava com a republicação; atualmente, ela regulamenta ambos os processos”. Neste contexto, a interpretação da lei não apoia a criatividade, mas sim favorece a indústria.

O autor lembra que esse excesso de regulamentação sobre a produção criativa não faz parte da tradição legal da América. A legislação sempre existiu para proteger e estimular a criatividade, através da propriedade intelectual. Este instrumento está sendo usado agora para podar a criatividade.


Divulgação da cultura x indústria megalomaníaca

No caso do compartilhamento de arquivos, a grande questão é: quais são os principais prejudicados pela distribuição de cultura? A resposta não é "os criadores", mas sim a indústria. Os sistemas peer-to-peer e a possibilidade de baixar centenas de músicas para ouvi-las no seu IPod podem ser uma forma de divulgação para os artistas, porque eles ganham principalmente nos shows.

Mas, desse jeito, a indústria fonográfica perde receita, porque a venda de CDs cai. E as corporações não ganham com a realização de shows e turnês – na realidade esses eventos eram, tempos atrás, a melhor forma de divulgar o artista para a venda de discos. A mão se inverteu. Por isso as inúmeras tentativas de controle da rede sob a mão da Justiça. As empresas são as principais prejudicadas com o que se convencionou pirataria e são elas as cabeças de campanhas publicitárias agressivas que colocam todo tipo de acesso à cultura, que não pela aquisição e consumo do bem, como um crime.

Há inúmeras situações fora do mundo da internet que também representam uma tentativa de lucrar com o uso e a recriação da cultura. A cópia de livros é uma delas. De uns anos pra cá, disseminou-se uma intensa campanha contra a reprodução de publicações, mesmo que para usos não-comerciais – como é o caso, convenhamos, da maioria das pessoas que precisam reproduzir livros inteiros para pesquisas e produção intelectual.

Concordo com Lawrence Lessig quando atribui à propriedade um papel importante para o estímulo à produção. “Vivemos em um mundo que celebra a ‘propriedade’. Eu sou um desses celebradores. Eu acredito em um mundo de propriedades em geral, e eu também acredito no valor dessa forma estranha de propriedade que os advogados chamam de ‘propriedade intelectual’”. Entretanto, há uma diferença entre consumir cultura, ou utilizá-la para produzir mais cultura, e reproduzi-la em produtos para fins comerciais. A cultura pode ser propriedade, mas pode concomitantemente ser livre. Não há contradição nessa lógica.



“Uma cultura livre não é uma cultura sem
propriedades; não é uma cultura aonde os artistas não são pagos. Uma
cultura sem propriedades, aonde os artistas não são pagos, é uma anarquia,
não liberdade. Anarquia não é o que eu sugiro aqui.
De fato, a cultura livre que eu defendo nesse livro é um equilíbrio entre
anarquia e controle. Uma cultura livre, como um mercado livre, é composta
de propriedades. Ela é composta por regras de propriedade e contratos que
são garantidos pelo estado. Porém, da mesma forma que um mercado livre é
corrompido se sua propriedade se torna feudal, da mesma forma uma cultura
livre pode ser deturpada pelo extremismo nos direitos à propriedade que a
definem. Isso é o que eu temo sobre a nossa cultura atual. Foi por causa
desse extremismo que esse livro foi escrito.”

Lawrence Lessig